quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O que é melhor para a saúde: gordura ou carboidrato?

Sem sombra de dúvida, o melhor é ter bom senso! O assunto é polêmico e novas evidências chegam  a cada dia. No entanto, a leitura da literatura científica deve ser criteriosa. Ler apenas o título ou o resumo de um artigo não melhora em nada a assistência ao paciente. Além disso, pode contribuir para propagação de desinformação e do terrorismo nutricional. Dito isto, vamos dar uma olhada no estudo PURE, publicado no periódico médico The Lancet, em agosto de 2017.



O estudo PURE avaliou o quanto a composição da nossa alimentação é responsável por desfechos adversos como morte ou problemas cardiovasculares. Para fazer isso, os pesquisadores selecionaram pessoas entre 35 e 70 anos de idade em 18 países (incluindo o Brasil) e aplicaram questionários para saber o que essa turma comia. Mais de 130 mil indivíduos foram acompanhados por cerca de 7 anos. Após as devidas análises, os pesquisadores perceberam que o maior consumo de carboidratos aumentou o risco de morte por qualquer causa em 28%. Já o maior consumo de gordura, independente do tipo, se associou com um risco 23% menor de morrer por qualquer causa. Nem carboidratos nem gorduras foram culpados por problemas cardiovasculares. A exceção foi que o risco de acidente vascular encefálico, popularmente conhecido como “isquemia” ou “AVC”, foi menor nos indivíduos com maior consumo de gordura saturada. Olhando superficialmente, comer um monte de gordura e pouco carboidrato seria a melhor opção para saúde. Será mesmo?
Primeiramente, é importante definir o que foi o “maior consumo” tanto de gordura quanto de carboidratos. No caso dos carboidratos, a ingestão associada a aumento no risco de morte foi de 67,7% do total de calorias. No caso das gorduras, a ingestão máxima foi de 35,3%. Em outras palavras, a ingestão de carboidratos deletéria estava acima do considerado apropriado para as diretrizes (45 a 65%) e a ingestão de gordura estava dentro do considerado apropriado (20 a 35%). Ou seja, o abuso na ingestão de carboidratos pode ser parte do problema.
Quando falamos de carboidratos, falamos de açúcar, pães, massas, mas também falamos de cereais integrais, frutas e vegetais. O problema é que o estudo não faz essa diferenciação! Será que o aumento da mortalidade no grupo que consumiu mais carboidratos foi por que as pessoas comeram mais arroz integral, ou será que foi por que beberam mais refrigerante? Essa é uma informação essencial que não foi reportada. Além disso, muitas das fontes de carboidratos refinados são produtos processados, que muitas vezes costumam também conter sódio e gordura trans em excesso, dois vilões conhecidos. No entanto, esta informação também não é disponibilizada pelo estudo.
Assim como as fontes de carboidratos não são adequadamente reportadas, as de gordura também não são. Ao contrário do que possa parecer, o estudo não avaliou apenas óleos vegetais, banha ou manteiga. Avaliou a composição da dieta como um todo. Alimentos que consumimos diariamente, mesmo quando preparados sem óleo/azeite/banha, possuem gordura naturalmente (carne, peixe, queijo, castanhas, cereais, iogurte…) ou adicionada (diversos alimentos processados). Em outras palavras, podemos ter duas dietas com a mesma quantidade de gorduras e carboidratos, muito diferentes uma da outra, uma saudável e outra nem tanto.
Aliás, sabemos que nossa alimentação varia dia após dia, semana após semana, ano após ano. O estudo aplicava o questionário alimentar em intervalos de 3 anos. Será mesmo que todo paciente manteve exatamente o mesmo padrão durante todo este período? Será que alguns pacientes não modificaram suas dietas, para um consumo menor de gorduras justamente por terem um risco maior de problemas de saúde? Será que as pessoas que consumiam mais gordura não se permitiam a isso por serem mais saudáveis? São questões que os próprios autores do trabalho reconhecem não ter conseguido responder.
Por fim, este estudo definitivamente não dá respaldo a dietas com restrições extremas de carboidratos ou abusivas em gorduras (very low carb e cetogênicas), já que os participantes não comeram menos de 42% de carboidratos, nem mais do que 38% de gordura.
Em resumo, gorduras não são as vilãs que se pregava em outros tempos, desde que consumidas dentro de um padrão alimentar e de atividade física equilibrado. Já o consumo abusivo de carboidratos, especialmente refinados ou vindos de alimentos altamente processados, pode sim trazer prejuízos à saúde. Ou seja, como dito antes, o melhor é optar pelo bom senso!

Fonte:
1- Associations of fats and carbohydrate intake with cardiovascular disease and mortality in 18 countries from five continents (PURE): a prospective cohort study. August, 2017. The Lancet.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Lítio e tireoide

O lítio, na forma de carbonato, é amplamente utilizado dentro da psiquiatria como tratamento para transtornos do humor. No entanto, seu uso pode se associar a problemas na tireoide, especialmente bócio e hipotireoidismo. Vamos entender como isso acontece…


O mecanismo pelo qual o lítio interfere no funcionamento da tireoide ainda não é bem compreendido. Alguns estudos em seres humanos e animais demonstram que o lítio aumenta a quantidade de iodo dentro da tireoide. Além disso, tanto a fabricação quando a liberação dos hormônios tireoidianos (T4 e T3) pode ser prejudicada. Ora, dito isso, fica mais fácil de entender o porquê do bócio e do hipotireoidismo.
Como menor liberação do T4 e do T3, nossa hipófise aumenta a secreção do TSH, hormônio que estimula a tireoide (veja na figura). O TSH por sua vez faz com que a tireoide aumente de tamanho para compensar a produção de T4 e T3 diminuída. Quando este crescimento da glândula é significativo, chamamos de bócio. Entre 40 e 50 por cento dos usuários de lítio podem desenvolver bócio.
Quando o aumento do TSH não é capaz de compensar a diminuição da produção de T4 e T3 induzida pelo uso de lítio, o paciente pode desenvolver hipotireoidismo. Assim como no bócio, até metade dos usuários de lítio pode desenvolver hipotireoidismo, que na maioria das vezes é subclínico, isto é, leve.
Tanto o bócio quanto o hipotireoidismo costumam dar as caras nos primeiros dois anos de uso do lítio. E como ambas são complicações frequentes, é recomendada uma avaliação tireoidiana antes do início do tratamento com lítio. Esta avaliação é bem simples. Consiste em exame clínico (inspeção e palpação da tireoide), seguida por avaliação laboratorial (dosagem do TSH e do anti-TPO). Quando está tudo em ordem, o paciente deve ser reavaliado em intervalos regulares a cada 6 ou 12 meses.
Disfunção tireoidiana ou presença de bócio não contraindicam o uso do lítio. Se qualquer alteração no volume ou no funcionamento da tireoide são identificados antes ou durante o tratamento, o uso do lítio pode ser continuado e a doença tireoidiana é manejada a parte. Logo, a comunicação entre psiquiatra e endocrinologista é parte essencial do cuidado ao paciente com transtorno de humor. 

Fonte: Lithium and the thyroid – UpToDate Online

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Hipotireoidismo e níveis de colesterol e triglicerídeos

Os hormônios produzidos pela glândula tireoide são responsáveis por regular nosso metabolismo. Desde a década de 1960, sabe-se que pacientes com hipotireoidismo, isto é, com baixa produção de T4 e T3 pela tireoide, podem ter dislipidemia (níveis elevados de lipídios - colesterol e triglicerídeos). Vamos entender como isso ocorre.



Em uma série de 295 pacientes com hipotireoidismo, apenas 8,5 por cento tinham níveis normais de colesterol e triglicerídeos. A grande maioria dos pacientes com deficiência de hormônios tireoidianos apresentava elevação principalmente do colesterol total e do colesterol LDL (“colesterol ruim”). Isso ocorre porque no hipotireoidismo os receptores celulares de LDL estão diminuídos em número e em atividade. Ou seja, nossas células perdem a capacidade de captar o colesterol da corrente sanguínea e ele sobe. Além disso, a oxidação LDL está acelerada, o que aumenta a deposição do colesterol nas paredes dos vasos sanguíneos, processo que damos o nome de aterosclerose e que leva a doenças vasculares como infarto e isquemias.
O aumento no risco das doenças vasculares visto no hipotireoidismo não é só culpa das alterações dos lipídios. A deficiência hormonal também é responsável por elevar a pressão arterial diastólica, causar disfunção no endotélio (camada que reveste o interior dos vasos sanguíneos) e aumentar marcadores inflamatórios como a proteína C reativa. Um verdadeiro combo aterosclerótico!
Quando olhamos o problema de outra perspectiva, também podemos constatar que pessoas com elevação do colesterol e triglicerídeos têm uma chance maior de receber o diagnóstico de hipotireoidismo. Alguns levantamentos demonstram que cerca de 7 por cento dos indivíduos com dislipidemia também apresentam diagnóstico de hipotireoidismo. Logo, TODO paciente com elevação nos níveis de colesterol ou triglicerídeos deve ser avaliado para hipotireoidismo.
Felizmente, o tratamento do hipotireoidismo com levotiroxina, hormônio sintético da tireoide, também tem efeito positivo nos níveis de colesterol. Quanto pior a deficiência de hormônio e mais elevados os níveis de colesterol, melhor parece ser a resposta. Em um estudo, pacientes com hipotireoidismo e colesterol total acima de 310 mg/dL, apresentaram queda de 131 mg/dL nos níveis, em média.
Em resumo, o hipotireoidismo costuma causar elevação nos níveis de colesterol e triglicerídeos, logo, todo paciente com dislipidemia também precisa ser avaliado para deficiência de hormônio tireoidiano.

Fonte: Lipid abnormalities in thyroid disease – UpToDate Online

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991