terça-feira, 22 de novembro de 2016

Terapia hormonal da mulher transgênero (transexualismo - male to female - MTF)

Para a boa compreensão deste texto, é importante a compreensão dos seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se do sexo masculino, feminino, de nenhum ou de ambos.
2- Sexo biológico: tipicamente definido de acordo com a genitália externa ou pelos cromossomos sexuais.
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, através da forma de agir, vestir-se, comportar-se.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando o sexo biológico não é completamente compatível com a identidade de gênero.
5- Orientação sexual: comportamentos envolvendo a prática sexual (homossexual, heterossexual, bissexual).
6- Mulher transgênero: indivíduo com identidade de gênero feminina com sexo biológico masculino.
7- Homem transgênero: indivíduo com identidade de gênero masculina com sexo biológico feminino.



Após o diagnóstico apropriado da incongruência de gênero e discussão dos riscos e benefícios da tratamento, a mulher transgênero poderá iniciar a terapia hormonal com o endocrinologista. O tratamento consiste basicamente na supressão dos androgênios produzidos pelos testículos e reposição de estrogênio, com a pretensão de diminuir pelos no rosto, aumentar o tamanho das mamas e tornar os contornos do corpo mais femininos. Vamos entender, passo a passo, como funciona.
A reposição de estrogênios usualmente é feita através da administração de 17-beta-estradiol por via oral ou transdérmica. O 17-beta-estradiol é especialmente útil por permitir que os níveis no sangue sejam monitorados, além de apresentar menor risco de trombose quando comparado ao etinilestradiol (este, não recomendado). A reposição de estrogênio, além de ser responsável pelas mudanças corporais desejadas pela mulher transgênero, também é capaz de suprimir a produção de androgênios. A administração do 17-beta-estradiol sozinha já é capaz de inibir a produção das gonadotrofinas (LH e FSH), assim diminuindo a produção de testosterona pelos testículos. A paciente é monitorada regularmente para que os níveis de estradiol sejam mantidos abaixo de 200 pg/mL e de testosterona, abaixo de 55 ng/dL. Em grande parte dos casos, além do uso de estrogênios, também são usados medicamentos para inibir a secreção ou a ação dos androgênios.
Para "combater" os androgênios, cujo principal é a testosterona, temos à disposição como primeira linha de tratamento a espironolactona e a ciproterona. A espironolactona é um antagonista do receptor mineralocorticoide que apresenta efeitos de inibição competitiva do receptor androgênico além de inibir a esteroidogênese testicular, ou seja, é capaz de bloquear tanto a produção quanto a ação da testosterona. Já a ciproterona tem efeito de suprimir a produção de gonadotrofinas, devido ao seu efeito progestágeno, além de bloquear a ação dos androgênios. Como segunda linha, temos os agonistas do GnRH, medicamentos injetáveis e de alto custo, que inibem a produção do FSH/LH e consequentemente de testosterona. Estas modalidades de tratamento podem ser usadas enquanto a paciente ainda tiver os testículos.
Os efeitos esperados da terapia hormonal da mulher transgênero são:
Pelos (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo a partir de 3 anos): alguns pelos como os da barba podem ser resistentes à terapia hormonal, necessitando do uso de medidas complementares como o laser.
Mamas (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 2 a 3 anos): Pode haver sensibilidade durante o desenvolvimento mamário. A adequada inibição dos androgênios potencializa o efeito do 17-beta-estradiol. As pacientes precisam participar de exames de rastreamento de câncer de mama como qualquer mulher.
Pele (início do efeito em 3 a 6 meses): Com a tratamento a pele costuma ficar menos oleosa e mais macia. Em alguns caso, pode ficar seca e as unhas podem ficar quebradiças.
Composição corporal (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo em 1 a 3 anos): É esperada uma redução no volume e na força muscular com acúmulo de gordura nos quadris, tornando as medidas corporais mais femininas.
Voz (não muda): A voz não muda com o tratamento. A paciente é aconselhada a fazer terapia da fala com fonoaudiólogo.
Testículos e próstata (início do efeito em 3 a 6 meses - efeito máximo com muitos anos): O tratamento leva a atrofia progressiva dos testículos e redução do volume da próstata. Logo, pacientes que desejem manter a fertilidade devem ser devidamente aconselhados antes do início do tratamento. Paciente que permanecem com a próstata também devem fazer exames periódicos de prevenção como qualquer paciente do sexo masculino.
Função sexual (início do efeito em 1 a 3 meses - efeito máximo em 3 a 6 meses): A terapia hormonal da mulher transgênero leva a redução da libido, das ereções e da ejaculação em graus variados. Algumas pacientes, que desejam manter a função sexual, precisam ter as doses da terapia ajustadas. Nas pacientes que fazem cirurgia genital, a função sexual é variável e dependente da função sexual antes do procedimento, do tipo da cirurgia realizada e dos níveis hormonais.
Por fim, o acompanhamento regular com endocrinologista familiarizado com este tipo de tratamento deve ser frequente e regular para que se evite consequências tanto do excesso ou quanto da deficiência hormonal, tais como: problemas na libido, fragilidade óssea, aumento no risco de trombose ou mesmo de câncer.

Fonte: Transgender women: Evaluation and management

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Avaliação clínica inicial do paciente transgênero (transexual)

Para a boa compreensão deste texto, primeiramente precisamos estar familiarizados com os seguintes termos:
1- Identidade de gênero: a percepção do indivíduo em sentir-se do sexo masculino, feminino, de nenhum ou de ambos.
2- Sexo biológico: tipicamente definido de acordo com a genitália externa ou pelos cromossomos sexuais.
3- Expressão do gênero: como o indivíduo expressa seu gênero no mundo real, através da forma de agir, vestir-se, comportar-se.
4- Incongruência ou disforia de gênero: desconforto ou sofrimento que pode ocorrer quando o sexo biológico não é completamente compatível com a identidade de gênero.
5- Orientação sexual: comportamentos envolvendo a prática sexual (homossexual, heterossexual, bissexual).
6- Mulher transgênero: indivíduo com identidade de gênero feminina com sexo biológico masculino.
7- Homem transgênero: indivíduo com identidade de gênero masculina com sexo biológico feminino.



Diferentes estudos sugerem que entre 0,3 e 0,8 por cento da população seja transgênera. A maioria destas pessoas procura assistência médica e psicológica no início da vida adulta ou na adolescência, apesar de muitos referirem desconforto mesmo antes da puberdade. Hoje, com maior exposição na mídia, maior aceitação social e maior acesso à assistência, os indivíduos transgênero tendem a buscar mais cedo os serviços de saúde. Algumas vezes são procurados os serviços de saúde mental pelo sofrimento psicológico causado pela incongruência de gênero. Outras vezes, o endocrinologista é procurado para prescrição hormonal. No entanto, a abordagem do paciente transgênero é multidisciplinar.
Embora muitos pacientes transgênero sejam de fácil identificação, outros podem ter o diagnóstico dificultado por problemas de saúde mental concomitantes. Logo, a disforia ou incongruência de gênero deve ser diagnosticada por profissional da saúde qualificado e experiente, geralmente da área de saúde mental (psiquiatra). Alguns pacientes, por receio de sofrerem rejeição por parte do profissional de saúde ou por ansiedade em querer começar rapidamente o tratamento, acabam pulando esta etapa, o que não é aconselhável. Neste momento, além do diagnóstico preciso, o paciente transgênero conhece os riscos e benefícios da terapia, bem como apresenta suas expectativas. Quando estas expectativas são pouco realistas, precisam ser trabalhadas. O contato com outros pacientes transgênero é útil em esclarecer dúvidas quanto a problemas pessoais e sociais que poderão surgir. O suporte da família e dos amigos também é importante.
As mudanças físicas induzidas pelo tratamento não são iguais em todos os pacientes, ou seja, depende da biologia de cada pessoa. Algumas mudanças podem aparecer rapidamente, outras demoram mais tempo e podem não ser completas. Estas transformações são difíceis de prever e podem não se correlacionar perfeitamente com a reposição hormonal. Logo, o paciente deve estar preparado para monitorização frequente e assimilação progressiva das alterações no seu dia a dia.
O tratamento do paciente transgênero pode levar à perda da fertilidade. Por isso, questões relacionadas a filhos e constituição de família devem ser discutidas.
Por fim, a individualização é muito importante. Enquanto alguns pacientes preocupam-se apenas com traços do rosto, com pelos e mamas, outros podem preocupar-se com a mudança da genitália. O tratamento individualizado visa garantir bem estar físico, psicológico e sexual, ou seja, qualidade de vida e satisfação ao paciente.

Fonte: Transgender women: Evaluation and management - UpToDate OnLine.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

domingo, 6 de novembro de 2016

Refrigerante, o novo cigarro

Nossa! Quanto exagero comparar refrigerantes, ou mesmo outras bebidas açucaradas, ao cigarro. Será mesmo? Vamos entender o porquê desta comparação “maluca”...
Neste ano de 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou aumentar os impostos sobre refrigerantes e outras bebidas doces em pelo menos 20 por cento. Prontamente, o governo do Reino Unido anunciou aumento de impostos para os refrigerantes a partir de 2017. Como bons brasileiros, sempre temos um pé atrás com aumento de tributos. Mas a Universidade de Oxford fez uma análise estatística do impacto desta medida para os ingleses: o aumento de 20% no preço, levaria a redução na ingestão de açúcar (sim, refrigerantes contêm muito açúcar) de 15%. Esta pequena diminuição no consumo já seria capaz de prevenir que 180 mil pessoas se tornassem obesas em 1 ano! Sem falar num número ainda maior de pessoas que deixariam de engordar (1).



Se o problema se restringisse apenas ao peso... mas diferentes estudos associam o consumo excessivo de açúcar ao aumento na incidência de diabetes mellitus, mesmo em pessoas com peso normal. Além disso, independentemente do índice de massa corporal e do grau de atividade física, quem consome mais açúcar corre um risco maior de morrer de doenças cardíacas e vasculares (2).
Mas se o problema é o açúcar, por que culpar só os refrigerantes? Por dois motivos muito importantes: 1- os refrigerantes são responsáveis por cerca de 1/3 de todo o açúcar consumido. 2- a indústria destas bebidas tenta de toda forma esconder o quanto o “refri” faz mal à sua saúde.
Desde que os primeiros estudos correlacionando o fumo ao câncer de pulmão foram publicados, demorou cerca de 50 anos até que políticas públicas de restrição de consumo fossem plenamente implementadas. No início, a indústria do tabaco esperneou negando a associação do seu produto com doenças, lançando dúvidas para confundir o público e, pior, comprando a lealdade de cientistas e políticos corruptos. Apesar disso, nas últimas 3 décadas, a redução do tabagismo preveniu muitas mortes por câncer e doenças cardiovasculares.
A indústria do refrigerante não fez diferente: tentou associar a epidemia de obesidade, diabetes e doenças vasculares ao consumo de gordura e à inatividade física, isentando o açúcar. Nesse processo, cientistas e políticos também foram corrompidos. Por fim, esta indústria está lavando as mãos e dizendo que a responsabilidade por optar pelo produto pouco saudável é sua, o consumidor!
A verdade é que a briga está apenas começando... Assim como no combate ao fumo, além de impostos mais altos, as bebidas doces (refrigerantes, sucos processados, néctares, isotônicos, etc) precisam ter a publicidade devidamente regulada e serem desvinculadas de atividades saudáveis como esportes. Isso salvou vidas no passado e vai salvar mais vidas no futuro. Se o refrigerante realmente é o novo cigarro, vamos começar a tratá-lo desta forma!

Fontes:
1- Briggs ADM, Mytton OT, Kehlbacher A, et al. Overall and income specific effect on prevalence of overweight and obesity of 20% sugar sweetened drink tax in UK: econometric and comparative risk assessment modelling study. BMJ. 2013;347:f6189. 
2- Yang Q, Zhang Z, Gregg EW, Flanders WD, Merritt R, Hu FB. Added sugar intake and cardiovascular diseases mortality among US adults. JAMA Intern Med. 2014;174:516-524. 
3- Aseem Malhotra. Sugar Is the New Tobacco, so Let's Treat It That Way. Medscape Public Health.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

domingo, 23 de outubro de 2016

Câncer de mama e diabetes mellitus

O Outubro Rosa é a época do ano em que se chama mais a atenção para o câncer de mama, a neoplasia maligna mais comum em mulheres. Cerca de 16 por cento das pacientes acometidas pelo câncer de mama também têm diagnóstico de diabetes mellitus. Mas será que o diabetes aumenta o risco ou piora o prognóstico do câncer de mama?



Há mais de um século sabemos que o diabetes mellitus está associado a alguns tipos de câncer, como pâncreas e endométrio. Contudo, a associação com o câncer de mama parece ser mais complexa e algumas questões permanecem sem respostas definitivas. Tanto o câncer de mama quanto o diabetes compartilham fatores de risco em comum. Obesidade e idade avançada aumentam a chance de desenvolver ambas as doenças. Existem pelo menos 3 possíveis mecanismos que ajudam a explicar uma possível associação do câncer de mama com o diabetes.
Pacientes diabéticas do tipo 2 apresentam resistência a ação da insulina e, pelo menos em fases iniciais da doença, excesso de produção de insulina. Existem receptores de insulina (IR) no tecido mamário. A ativação destes receptores pode ativar a proliferação desordenada de células mamárias em alguns casos. Alguns estudos sugerem uma maior expressão dos IR em tumores mamários.
Existe um segundo tipo de receptor, chamado receptor para o IGF1 (IGF1R), que também é capaz de estimular a proliferação celular em algumas circunstâncias. Este receptor tem uma semelhança de 55% com o receptor da insulina. Além disso, o IGF1R e o IR podem se hibridizar, isto é, os dois receptores podem se combinar em um só. Talvez os níveis elevados de insulina possam também estimular o IGF1R e levar a proliferação celular.
Por fim, o diabetes aumenta a produção de estrogênios e androgênios especialmente nas suas formas livres, pois diminui os níveis da SHBG, proteína que se liga a estes hormônios. Como o câncer de mama é sabidamente hormônio dependente, o diabetes poderia aumentar o risco desta neoplasia também por esta via.
Contudo, apesar de evidências de que a associação entre câncer de mama e diabetes exista, ainda não podemos afirmar que o diabetes por si só seja fator causal, já que, como dito anteriormente, as duas doenças compartilham fatores de risco. Além disso, o possível aumento de risco de câncer entre 10 e 20 por cento em mulheres diabéticas não vale para as pacientes com diabetes mellitus do tipo 1. Apenas pacientes com diabetes decorrente de aumento da resistência a ação da insulina (tipo 2 e diabetes gestacional) parecem ter aumento no risco de câncer de mama. 
De qualquer forma, as pacientes portadoras de diabetes mellitus de qualquer tipo devem mais do que qualquer mulher ser orientadas a participar dos programas de rastreamento do câncer com mamografia. Outro ponto importante é a assistência médica diferenciada no caso de diagnóstico do câncer de mama. As pacientes diabéticas têm potencial maior de apresentarem complicações cirúrgicas, da radioterapia e da quimioterapia. Logo, o contato direto e constante do mastologista, do oncologista e do endocrinologista é imprescindível para o sucesso do tratamento.
Fonte:
1- Wolf I, Sadetzki S, Catane R, Karasik A, Kaufman B. Diabetes mellitus and breast cancer. Lancet Oncol. 2005;6(2):103

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Café e hormônio da tireoide

Pacientes com diagnóstico de hipotireoidismo precisam receber reposição de hormônio tireoidiano, a levotiroxina. Para garantir a boa absorção do medicamento, o comprimido deve ser ingerido ao acordar, em jejum, com um copo de água. Além disso, deve-se esperar de 30 a 60 minutos para comer.



Uma pergunta muito frequente é: "Já que não posso comer por 30 a 60 minutos, posso ao menos tomar uma xícara de café?" Não! Vamos entender por quê...
Um grupo de pesquisadores italianos estudou o efeito da ingestão do café na absorção da levotiroxina. Para isso, avaliou os níveis sanguíneos do hormônio tireoidiano durante um período de 4 horas após a ingestão do comprimido. Em momentos diferentes, os voluntários da pesquisa ingeriram 100 mcg de levotiroxina com água, café ou água seguida de café após 60 minutos de intervalo. As pessoas que ingeriram os comprimidos juntamente com o café apresentaram uma redução na absorção de 27 a 36 por cento. É como se tivessem tomado apenas 2/3 da dose do comprimido! O consumo de café após 60 minutos não interferiu na absorção do hormônio tireoidiano.
Logo, além de não comer no intervalo de 30 a 60 minutos após a ingestão da levotiroxina, o paciente com hipotireoidismo deve evitar o consumo de café, já que esta bebida pode interferir na absorção do medicamento e dificultar o ajuste da dose da medicação.

Fonte:
1- Benvenga S, Bartolone L, Pappalardo MA, Russo A, Lapa D, Giorgianni G, Saraceno G, Trimarchi F. Altered intestinal absorption of L-thyroxine caused by coffee. Thyroid. 2008;18(3):293.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

domingo, 25 de setembro de 2016

Refrigerantes: questão de saúde pública

Já é de conhecimento geral a epidemia de doenças metabólicas em que vivemos, das quais se destacam a obesidade e o diabetes mellitus tipo 2. O estilo de vida moderno, caracterizado por sedentarismo e alimentação inapropriada, é o grande responsável pelo aumento dessas patologias. A estratégia de combate à obesidade e ao diabetes envolve medidas comportamentais tomadas pela própria população e medidas socioambientais que podem contar com o suporte de políticas públicas.



A alimentação leva em conta não apenas o que se come, mas também o que se bebe. Nos últimos anos, a literatura médica tem trazido cada vez mais informações a respeito dos prejuízos que as bebidas adoçadas artificialmente, sejam elas refrigerantes, sucos industrializados ou isotônicos, podem causar à saúde. Evidências são cada vez mais fortes de que o consumo regular de refrigerantes possa, além de aumentar o peso, causar diabetes, e pior, aumentar a incidência de doenças cardiovasculares como infartos do miocárdio e isquemias cerebrais em cerca de 20%. Só a título de comparação, o cigarro aumenta esse risco em 27%.
Grande parte dessas “novidades” acaba não chegando ao grande público, principalmente devido ao lobby de uma das indústrias mais poderosas do mundo, que muitas vezes está presente até em eventos da classe médica. Em 2016, o principal fabricante de refrigerantes foi considerada a décima terceira marca mais valiosa do planeta segundo o relatório Brandz!
Então, o que fazer para nos “protegermos” dos refrigerantes? Em primeiro lugar, temos de mudar nossos hábitos. Está com sede? Beba água. Ensine sua família, seus filhos e seus amigos a fazer isso e explique as vantagens. Em segundo lugar, e a meu ver uma estratégia de suma importância, exigir políticas que desestimulem o consumo. Veja bem, não estou falando em proibir o consumo, mas, sim, induzir que se consuma menos.
São medidas socioambientais plausíveis para políticas públicas nas diferentes esferas: em nível municipal, exigir que os estabelecimentos de alimentação ofertem água potável da rede (não engarrafada) de forma gratuita, como qualquer país civilizado faz. Em nível estadual, aumentar a carga tributária sobre esse tipo de bebida e, ao mesmo tempo, desonerar opções saudáveis como frutas e verduras. Em nível federal, regular a propaganda, que, aliás, é muito mal-intencionada, pois sempre associa esse tipo de bebida a hábitos saudáveis, e não à obesidade, o que seria mais sensato.
Resumindo, beba menos refrigerantes e ajude outras pessoas a também diminuir o consumo. Além disso, cobre para que seus representantes façam o mesmo. A saúde de todos agradece.

Fonte:
1- Narain A, Kwok CS, Mamas MA. Soft drinks and sweetened beverages and the risk of cardiovascular disease and mortality: a systematic review and meta-analysis. Int J Clin Pract. 2016 Jul 25. doi: 10.1111/ijcp.12841.


Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Consumo de ovos e diabetes mellitus

Uma pergunta sempre gerava debate quando eu ainda estava na escola: “Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?” Segundo a teoria evolucionista, o ovo chegou primeiro. E as galinhas são primas bem distantes dos dinossauros (!). Hoje a pergunta que gera polêmica é outra: “Comer um montão de ovos é bom para quem convive com o diabetes?” Vejamos o que os estudos nos dizem...


Os ovos de galinha são ricos em colesterol, isto é fato. No entanto, também são ricos em uma série de nutrientes interessantes. Além de serem uma importante fonte de proteína, os ovos oferecem compostos carotenoides, arginina e folato, que, teoricamente, poderiam ajudar a proteger nosso sistema cardiovascular. Sem falar nas versões ricas em ômega 3. Contudo, como sempre digo, a ciência cria hipóteses que precisam ser testadas. Só assim, sabemos se uma intervenção funciona.
Desde metade do século 20, os ovos são matéria de estudo de médicos e nutricionistas. Um dos maiores estudos populacionais já realizados, o estudo Framingham, avaliou o efeito do consumo de ovos nos seus participantes dentro de um período de 24 anos. Neste estudo, o consumo médio de 6 ovos por semana para homens e 4 ovos por semana para mulheres não aumentou o risco de problemas cardíacos. Contudo, as pessoas que consumiam muitos ovos apresentaram uma chance um pouco maior de desenvolver diabetes mellitus tipo 2.
Outros dois grandes estudos, o HPFS e o NHS, que juntos totalizaram quase 120 mil pessoas, conseguiram avaliar o efeito do consumo de ovos especificamente em pessoas com diagnóstico de diabetes. Segundo dados destes estudos, pacientes diabéticos que consumiam mais de 1 ovo por dia apresentaram um risco maior de sofrer doenças cardíacas e vasculares. Posteriormente outro estudo, o HPS, mostrou um risco maior de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e morte para os pacientes diabéticos que consumiam mais de 7 ovos por semana.
Há diversas críticas a estes estudos, principalmente por terem sido feitos na população americana, que não tem uma dieta muito saudável. Além disso, existem estudos em outros países mostrando dados diferentes. No entanto, as análises de todo o conjunto de dados sobre o assunto “consumo de ovos em pacientes diabéticos”, através de revisões sistemáticas, mostram que o consumo de apenas 1 ovo por dia já pode aumentar o risco de diabetes mellitus tipo 2 em 42 por cento. E, em pessoas já diabéticas, 7 ou mais ovos por semana parecem aumentar o risco de doenças cardiovasculares.
Isto quer dizer que ovos não devem ser consumidos por pessoas diabéticas ou em alto risco para a doença? Não. Nenhum alimento isolado causa ou trata o diabetes mellitus. Padrões alimentares e comportamentais associados à carga genética estão por trás da doença. Mas, com certeza, o consumo exagerado de ovos pregado em algumas dietas vendidas indiscriminadamente através da internet não encontra respaldo científico e pode ser potencialmente prejudicial à saúde. Até que a ciência tenha respostas mais definitivas sobre o assunto, até meia dúzia de ovos por semana, dentro de uma dieta equilibrada, não parece fazer mal à saúde de quem convive com diabetes. E sempre que houver dúvidas, profissionais éticos e atualizados devem ser consultados para que as individualidades de cada paciente sejam respeitadas.

Fontes:
1- Fuller NR, Sainsbury A, Caterson ID, Markovic TP. Egg Consumption and Human Cardio-Metabolic Health in People with and without Diabetes. Nutrients. 2015 Sep 3;7(9):7399-420.
2- Shin JY, Xun P, Nakamura Y, He K. Egg consumption in relation to risk of cardiovascular disease and diabetes: a systematic review and meta-analysis. Am J Clin Nutr. 2013 Jul;98(1):146-59.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Mestre em Endocrinologia
CREMERS 30.576