domingo, 27 de maio de 2018

Existe remédio para o fígado gorduroso (esteatose hepática)?

A doença hepática gordurosa não alcoólica, popularmente conhecida como esteatose hepática ou simplesmente fígado gorduroso, já é um problema de saúde pública. Nos Estados Unidos, onde o excesso de peso, a obesidade e o diabetes mellitus são muito frequentes, estima-se que uma em cada quatro pessoas seja acometida pela esteatose hepática. Por ser uma doença assintomática, a maioria dos portadores nem desconfia do problema.
Uma vez feito o diagnóstico, vem a pergunta: existe remédio para o fígado gorduroso? Por ser uma doença fortemente associada ao excesso de peso, o primeiro passo é procurar emagrecer mais de 7% do peso total. A perda de peso é capaz de melhorar a doença em mais de 90% dos casos. Mas e remédio mesmo, no sentido estrito do termo, existe algum? Existe, mas os medicamentos têm efeito limitado e são reservados a casos especiais. Vamos conhecê-los…


Pioglitazona

A pioglitazona é um medicamento originalmente desenvolvido para o tratamento do diabetes tipo 2. De forma simplificada, funciona melhorando a sensibilidade à insulina. Como a resistência à insulina é um dos mecanismos que leva ao acúmulo de gordura no fígado, a pioglitazona também poderia ajudar no tratamento da esteatose hepática.
Os estudos que avaliaram o uso da pioglitazona selecionaram pacientes que além de acúmulo de gordura no fígado, também apresentavam hepatite (esteato-hepatite não alcoólica) e fibrose (processo cicatricial que pode levar à cirrose). Para diagnosticar a esteato-hepatite não alcoólica sem dúvidas, a realização de uma biópsia do fígado se faz necessária. Quando comparada ao placebo (comprimido sem efeito), a pioglitazona ajuda a melhorar a inflamação hepática em cerca de metade dos pacientes, além de, aparentemente, retardar o processo de fibrose. No entanto, como os estudos realizados até o momento foram de curta duração, não sabemos se esta melhora em nível celular se reflete na prevenção de complicações clínicas. Em outras palavras, não existem evidências de que a pioglitazona seja capaz de evitar a cirrose e suas complicações como hemorragias digestivas, câncer de fígado ou necessidade de transplante.
O uso da pioglitazona é associado a efeitos indesejados. Ganho de peso, aumento do risco de insuficiência cardíaca, aumento do risco de fraturas, aumento (pequeno) no risco de câncer de bexiga devem ser pesados contra a melhora da atividade inflamatória do fígado na indicação do tratamento.
Em vista do exposto, a pioglitazona é reservada a pacientes com esteato-hepatite não alcoólica com fibrose confirmada por biópsia, isto é, casos com maior risco de evolução para cirrose.

Vitamina E

A vitamina E tem efeito antioxidante. O estresse oxidativo é um dos mecanismos por trás da esteato-hepatite não alcoólica. Quando comparada ao placebo, a vitamina E também ajuda a melhorar a atividade inflamatória no fígado. No entanto, diferentemente da pioglitazona, não parece retardar a progressão da fibrose. Além disso, pouco mais de um terço dos pacientes responde de forma apropriada.
Alguns estudos associam o uso regular de mais de 800 UI por dia de vitamina E com aumento no risco de morte. Já o estudo DIRECT associou o uso de doses maiores que 400 UI por dia com aumento no risco de câncer de próstata em homens. Devido ao perfil de segurança menos atraente, a vitamina E é reservada para pacientes com esteato-hepatite não alcoólica com fibrose confirmada por biópsia, não diabéticos e com baixo risco cardiovascular.

Existem outros medicamentos promissores sendo avaliados para o tratamento do fígado gorduroso, como o liraglutide e o ácido obeticólico, mas ainda não foram aprovados pelas agências regulatórias para este uso.
Em resumo, o tratamento mais seguro e sem contraindicações para a esteatose hepática ainda é a mudança no estilo de vida com o objetivo de reduzir o peso. Os medicamentos têm uso restrito a casos mais graves confirmados por biópsia.

Referência:
Diehl AM, Day C. Cause, Pathogenesis, and Treatment of Nonalcoholic Steatohepatitis. N Engl J Med. 2017 Nov 23;377(21):2063-2072.

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

domingo, 13 de maio de 2018

Pílula anticoncepcional e câncer de mama: existe motivo para pânico?

Desinformação faz muito mal à saúde! E o alvo da vez é a pílula anticoncepcional. Como as disfunções hormonais são mais frequentes no sexo feminino, atendo muitas mulheres, de todas as idades, todos os dias. Algumas dessas pacientes estão com receio de tomar a pílula, mesmo com indicação correta, por conta de conteúdos distorcidos que encontram disponíveis na internet. O alarme mais recente disparou quando a revista médica mais importante do mundo, o New England Journal of Medicine, publicou no final de 2017 um artigo dinamarquês associando o uso de anticoncepcionais hormonais a um pequeno aumento no risco de câncer de mama. Será, de fato, motivo para pânico?


Neste estudo, cerca de 1.800.000 mulheres com idade entre 15 e 49 anos foram acompanhadas por 11 anos em média. Durante este período, foram diagnosticados 5.955 casos de câncer em mulheres que NUNCA tomaram uma única pílula anticoncepcional e 2.883 casos em mulheres que usaram algum método hormonal por período maior que seis meses. O número de casos de câncer foi maior nas não usuárias, pois compreendiam a maior parte da população avaliada. Em termos relativos, o uso de qualquer tratamento hormonal (pílula, anel vaginal, adesivo, implante ou DIU) aumentou o risco de câncer de mama em 20 por cento em média - um pouco menos em quem usou por período mais curto e um pouco mais em quem usou por tempo mais prolongado.



À primeira vista, 20% pode parecer um número elevado. Mas a estatística prega peças no leitor desatento. Vou dar um exemplo hipotético: imaginem dois grupos de 100 pacientes. Um grupo assiste 30 minutos de TV todos os dias. O outro lê um livro por 30 minutos diariamente. Ao final de dez anos, duas pessoas no grupo da TV e uma pessoa no grupo dos livros desenvolvem Alzheimer. O risco relativo para desenvolver Alzheimer é 100 por cento maior no grupo da TV (!), embora, em termos absolutos, tenho sido as custas de apenas um caso a mais. No estudo dinamarquês, de cada 100.000 mulheres que usaram algum método contraceptivo hormonal, ocorriam 13 casos a mais de câncer quando comparado ao grupo que nunca tomou uma única pílula. Em outras palavras, um evento adverso, apesar de grave, pouco frequente.
Além disso, na avaliação por tipo de anticoncepcional, nem todos aumentaram o risco de câncer de mama. Pílulas com noretisterona, drospirenona, estradiol + dienogest e os métodos não orais, com exceção do DIU hormonal, não apresentaram aumento significativo no risco de câncer.
Os próprios autores do estudo concluem que o risco de câncer de mama é baixo e deve ser pesado contra os benefícios em prevenir uma gestação indesejada, além da potencial redução no risco de tumores malignos de ovário (redução de 30%), endométrio (redução de até 50%) e intestino grosso (redução de até 20%). Que a pílula pode reduzir risco de câncer, ninguém comenta...



A meu ver, dois são os motivos para a demonização indevida da pílula anticoncepcional. O primeiro é a ignorância. Ler um artigo científico é algo que exige tempo, técnica e crítica. Muitos cursos de Medicina são deficientes nesse quesito, e, infelizmente, sabemos que não é todo médico que tem a oportunidade de sanar essas dificuldades com uma boa formação - residência médica, prova de título de especialista, mestrado e/ou doutorado. Muitos acabam sendo seduzidos pelos “cursos de final de semana”, ministrados por pessoas despreparadas. E quem não sabe ler, tem que acreditar em quem diz que sabe. Triste…
O segundo é o interesse econômico. Ora, se eu convencer minha paciente que a pílula que ela compra por 20 reais vai causar um câncer de mama, posso oferecer meu tratamento de modulação hormonal com “hormônios bioidênticos” por um bom preço. O problema desta modalidade terapêutica, além do alto custo, é o perfil de segurança desconhecido. Em outras palavras, a ausência de estudos que demonstram risco não significa que o tratamento seja seguro. Apenas significa que a modalidade terapêutica não foi bem avaliada – você está servindo de cobaia de um experimento – ou os dados da avaliação estão sendo omitidos. Não sei o que considero pior…
Em resumo, quando a notícia for sensacionalista, sempre chequem as fontes da informação. Verifiquem as credenciais de quem escreveu o conteúdo. Está registrado no Conselho Regional de Medicina? Tem registro de especialista (RQE)? Tem condições mínimas de ler e interpretar a literatura científica? A popularização da internet, infelizmente, também deu voz a quem fala bobagem.

Fontes: 
1- Mørch LS, Skovlund CW, Hannaford PC, Iversen L, Fielding S, Lidegaard Ø. Contemporary Hormonal Contraception and the Risk of Breast Cancer. N Engl J Med. 2017 Dec 7;377(23):2228-2239.
Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991

terça-feira, 1 de maio de 2018

Vale a pena investir em suplementos alimentares?

Vitaminas e suplementos são um grande negócio. Segundo o New York Times, os americanos gastam mais de 30 bilhões de dólares por ano com “cápsulas milagrosas”. Ano após ano, as empresas fabricantes estimulam a crença de que se pode prevenir doenças, viver mais e com mais energia, se fizermos uso dos seus suplementos alimentares. Será isso mesmo?
Diversas pesquisas vem sendo desenvolvidas na área de suplementação alimentar. No entanto, elas têm mostrado que, em grande parte das vezes, os suplementos não ajudam. E pior: algumas vezes podem fazer mais mal do que bem à saúde. Abaixo, alguns fatos sobre suplementos.



1- Vitamina E e betacaroteno não previnem câncer ou doença cardiovascular.
Existem grandes estudos com essas vitaminas mostrando que não ajudam na prevenção destas doenças.

2- Pouco se sabe sobre multivitamínicos.
A evidência de que possa existir algum benefício é insuficiente.

3- Vitamina E e betacaroteno podem fazer mal à saúde.
Os estudos mostram que o uso de betacaroteno pode aumentar o risco de câncer em pessoas que fumam ou que se expuseram ao asbesto. Outros estudos associam o consumo de vitamina E ao câncer de próstata. Segundo os pesquisadores, homens com mais de 55 anos não deveriam consumir mais do 22 UI de vitamina E de fontes naturais por dia.

4- Existem formas melhores de prevenir doenças e viver mais.
Não fumar, manter o peso saudável e fazer pelo menos 30 minutos de atividades físicas na maioria dos dias da semana previnem doenças cardiovasculares e câncer de forma muito mais eficiente do que qualquer suplemento.

5- Nutrientes devem vir da alimentação saudável, não de suplementos.
Diversos estudos sugerem que a dieta mediterrânea ajude a prevenir doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer. Esse padrão alimentar se caracteriza pelo alto consumo de frutas e vegetais, além de carnes brancas magras, peixes, castanhas e nozes, azeite de oliva e grãos integrais.

6- Suplementos podem ser úteis em situações específicas.
Algumas pessoas podem se beneficiar de suplementos. Entre eles:
- mulheres que planejam ficar grávidas devem tomar ácido fólico.
- algumas pessoas com mais de 65 anos precisam tomar vitamina D.
- vegetarianos costumam precisar repor vitamina B12.

Conversar com profissionais sérios ajuda a fazer uso racional de vitaminas e suplementos apenas quando houver indicação precisa. Além de economizar recursos, essa atitude resguarda sua saúde.

Adaptado de:

Dr. Mateus Dornelles Severo
 Médico Endocrinologista
Doutor em Endocrinologia
CREMERS 30.576 - RQE 22.991